"Livros Didáticos"

Livros didáticos com dois paraguais e "palavrões" comprovam: no Brasil, o analfabetismo funcional é institucional
Vocês devem ter ouvido falar na polêmica sobre o livro "Dez na área, um na banheira e ninguém no gol", que teve 1.200 exemplares comprados pelo governo do estado e distribuídos para escolas públicas. É um livro em quadrinhos, feito por cartunistas brasileiros. Faz parte de um programa de compra de livros em quadrinhos para ajudar a estimular a leitura.
A polêmica, bem bobinha, é sobre o linguajar de uma das histórias. Da Folha:
O livro é recheado com expressões como "chupa rola", "cu" e "chupava ela todinha".
Quando a coisa apareceu, o governador José Serra foi à TV dizer que o livro é inadequado e que "achei um horror isso", "achei de muito mau gosto o desenho e tudo". Sexta passada, para tirar a palavra "cu" da reta, ele mandou recolher o livro. Pode ser mais um caso da "udenização do PSDB", descrita pelo professor Cláudio Gonçalves Couto em artigo de hoje no Valor (valeu a lembrança, @fangelico!), mas esse negócio de ficar rotulando partidos não leva muito longe. Dá pra aprofundar mais a análise, porque aí fica mais produtivo.
O mistério do cu impresso é um caso menos complicado do que o do livro com dois paraguais, muito embora o governador diga que o gibi é pior. O dos dois paraguais chegou a ser distribuído, com informações erradas.
A questão é a seguinte: alguém escolhe esses livros. Alguém aprova. Esse alguém responde a alguém que, em última análise, responde ao governador. Isso não cai do céu. Se a orientação do governo é a de que é inadequado uma criança da terceira série eventualmente poder pegar na biblioteca (esse hábito tão em desuso) um livro que contenha um palavrão, alguém é responsável.
No Brasil, aprova-se e assina-se sem ler. Os presidentes Lula e FHC já deram essa desculpa do "assinei mas não li". Na segunda, o CQC mostrou uma matéria em que eles foram à Câmara dos Deputados e constataram que vários deputados sequer sabiam o que vinha a ser o BNDES, instituição para a qual naquele exato momento estava sendo votado um crédito suplementar de R$ 100 bilhões. Eles estavam votando, mas não sabiam nem no que era. Votavam sem ler.
Esse tipo de prática lembra muito um dos grandes entraves ao desenvolvimento do Brasil: o analfabetismo funcional.
Analfabeto funcional é o sujeito que é alfabetizado, reconhece as palavras, mas não entende o que lê. Segundo o Instituto Paulo Montenegro, em 2007 havia 68% dos brasileiros nessa situação. Isso são quase sete em cada dez.
O que cura o analfabetismo funcional é uma boa educação. Mas se a secretaria responsável pela educação no estado mais rico do Brasil não lê o que aprova, fica difícil cobrar dos professores que alfabetizem direito seus alunos. Isso tem conseqüências. Sabendo que muitos brasileiros também não costumam ler, os políticos sabem que sempre podem se safar das batatas quentes dizendo que assinaram sem ler. Quem é que lê neste país, não é mesmo?
Pois é. Mas o problema é que, quando a incompetência é uma desculpa, pode ter certeza de que os espertalhões nadam de braçada.
Sabe o que isso parece? Parece o capitão Renault, do filme Casablanca. Ele é um policial corrupto, que fica sabendo que o bodegueiro Rick Blaine teria recebido vistos para os Estados Unidos. Ele quer os documentos para seus próprios fins, e resolve fechar o Rick's Bar para fazer buscas. Sob que argumento? Ele diz estar "chocado, chocado ao ver que há jogatina" no bar. Nisso, o crupiê chega para Renault e lhe entrega um saquinho de fichas: "seu prêmio, senhor". Ele agradece, embolsa e procede com o fechamento do bar.
Ou seja: chocado, chocado uma pinóia.
Pessoalmente, o que eu acho?
Não acho problemático haver expressões assim numa história em quadrinhos. Vários dos autores dessas histórias usam o mesmo estilo nas tirinhas da mesma Folha. Você pode achar complicado dar a uma criança da terceira série livros que as contenham, mas aí é outra história. Mas, como bem lembrou o Fausto Salvadori, o livro "Capitães da Areia", do Jorge Amado, também tem "palavrões". E, no entanto, é livremente distribuído nas escolas. Comparar Caco Galhardo com Jorge Amado é covardia? Depende.
Quando eu tinha essa idade, lembro de um colega meu que aprendeu a pesquisar em dicionário procurando o significado de palavrões. Não fossem palavras como "puta" e "merda", dificilmente ele teria esse interesse. Na hora em que precisava, era ele quem pesquisava mais rápido depois de mim.
O importante é um estudante pegar o hábito da leitura desde a infância. Se o fato de o livro ter impressa a palavra "cu" servir pra atrair um moleque a ler, viva o "cu".
Obsceno mesmo é o analfabetismo funcional ser aceito inclusive como prática política costumeira no Brasil.
E você, o que acha? por Marcelo Soares

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